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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Declaração de amor à vida de Marco Antônio de Queiroz

Declaração de amor à vida de Marco Antônio de Queiroz

Diabético aos 3 anos e cego aos 21, em conseqüência de retinopatia diabética, Marco Antonio de Queiroz não deixou que isso se transformasse numa barreira intransponível. Pelo contrário, armou-se de coragem e enfrentou a vida de peito aberto. Estudou história na PUC Rio, fez um curso de programador de computadores e trabalhou durante 23 anos até se aposentar em conseqüência de dois transplantes, um de pâncreas e outro de rim. Casado, pai de um filho, publicou em 1986 o livro Sopro no corpo, no qual narra sua história até 1985, contando como ficou cego, como aprendeu a usar a bengala e a perder o medo e a vergonha de ser deficiente e ir à luta. Agora, ele relança a obra com o título “Sopro no corpo: vive-se de sonhos”, pela Editora RiMa. Além de contar sua história até hoje, também explica como a vida dos cegos mudou com a internet. Nessa autobiografia, optou por narrar sua vida da mesma forma que a leva, com bom humor e suavidade. “Revelo minhas vitórias e derrotas, dores e prazeres para, no final, o leitor sentir que ela é um romance intenso, movimentado, que amo a vida justamente porque, com todos os meus limites, realizei meus maiores sonhos”, afirma. O livro pode ser definido como uma declaração de amor à vida.

ESTADO DE MINAS – Como você aprendeu a lidar com a deficiência visual?

Marco Antonio de Queiroz – Ser cego, realmente, não é como as pessoas imaginam ser quando fecham os olhos por um minuto e tentam fazer algo. Fiquei cego aos 21 anos e não tinha nenhum tipo de contato com essa realidade. Não dá para acreditar muito que aquilo que aconteceu é definitivo. Você não se sente cego, mas percebe a coisa como se fosse momentânea, até que a consciência da realidade aparece de frente e não há saída possível. Passei, então, por uma fase de entendimento da deficiência em que aprendia a andar, a me vestir, a tomar banho, pegar condução e, aos poucos, já estava retomando minha faculdade e aprendendo cada vez mais como fazer as coisas sem ver. Arrumei trabalho, casei, tornei-me pai e escrevi um livro. Ou seja, retomei a vida.

A perda da visão foi gradativa ou aconteceu de uma vez?

MAQ – Sendo simplista, posso dizer que encostei meu carro na garagem, no sábado de Carnaval de 1978, subi para o apartamento, dormi e acordei cego. Apesar de perceber vultos que poderiam me dar orientação se tivesse experiência, não consegui andar sozinho. Depois, no entanto, os vultos se foram. Agora, faço tudo o que posso sozinho, e não é pouco. No livro, conto tudo isso.

Teve algum momento em sua vida que você se desesperou ou ficou se perguntando: “Por que isso aconteceu comigo?” Você procurou respostas ou aceitou o fato naturalmente?

MAQ – Acho que aceitei minha cegueira com muita rapidez. Para isso ser entendido, posso explicar que já era uma pessoa que, apesar de ter muitos amigos, sentia-se meio fora de esquadro, diferente dos outros. Quando veio a deficiência visual, ser mais diferente do que já me sentia por ser diabético não foi traumático, foi tão somente uma importante dificuldade a ser ultrapassada. Sentir-se diferente e ser diferente podem ser coisas que venham juntas ou não. Eu já me sentia diferente. Socialmente, tive vergonha de ser cego, mas logo que encarei o fato, fui à luta. À falta das imagens a gente se adapta até com rapidez. O problema quase sempre é muito mais emocional que prático.

Você fala no livro que o cego é educado dentro de conceitos distorcidos. O que significa isso?

MAQ – Significa que, em geral, nós, os cegos, somos educados para não fazer nada. Tudo chega às nossas mãos. A família se reveza para que não toquemos nas coisas, com medo que nos machuquemos ao realizar as tarefas mais simples. Isso é a superproteção. Quando o cego consegue, por exemplo, usar uma faca para cortar o pão, o queijo, aprende a utilizar a torradeira automática ou mesmo, por vezes, tenta pegar um copo d’água, a família fica tensa e, muitas vezes, corta-lhe a iniciativa. Assim, alguns de nós acabam ficando exatamente o que as pessoas imaginam que seja um “ceguinho”. Ou seja, uma pessoa incapacitada para qualquer coisa prática. No entanto, tenho amigos cegos que já escalaram o Pão de Açúcar, já foram à Inglaterra sozinhos para fazer cursos de inglês, trabalham e moram sozinhos ou casados com pares cegos ou com visão. O cego tem que ter atitude para conseguir sua emancipação, sua liberdade.

Você enfrentou preconceito na faculdade e no trabalho?

MAQ – O preconceito, com o tempo, vai se desfazendo socialmente. Mas esse é um processo bastante lento. As pessoas, cada vez mais, se acostumam a ver um cego no cinema, no teatro, no trabalho, nas reuniões, andando com certa independência pelas ruas, aparecendo aqui ou ali. A mídia, a novela, as páginas da internet (www.bengalalegal.com é meu site), enfim, nossa presença cada vez maior no meio social acaba por fazer as pessoas acostumarem conosco, questionarem-se sobre o que podemos ou não fazer. No entanto, ainda temos que enfrentar muito preconceito, proveniente do desconhecimento e da ilusão das pessoas que imaginam, mas não conhecem a nossa realidade. Passei por preconceitos na faculdade e no trabalho, mas sempre dei a volta por cima e espero que isso continue. Por outro lado, a convivência com as pessoas cegas faz com que todos acabem por perceber que não somos exatamente como pensam. Com isso, o preconceito se modifica, tornando-se mais ameno.

O que mudou depois do transplante de rim e pâncreas? A expectativa que você tinha antes se realizou ou você teve que se adaptar?

MAQ – Tanto os meus transplantes quanto a cegueira são conseqüência crônica da diabetes. Se ela não for bem tratada, se o diabético não assumir a camisa de que tem a doença, e não seguir as regras que ela dita inexoravelmente, poderá passar por tudo o que passei. Os transplantes são a solução mais moderna e completa existente para nós, diabéticos que perderam – ou estão por perder – as funções renais ou qualquer outra perda, como a da visão, e que estão com uma diabetes completamente descontrolada. Meu transplante de rim foi sucesso total. Eu fazia tratamento de hemodiálise há três anos e a mudança foi da água para o vinho. Diria mais: do inferno para o céu. O transplante de pâncreas eu repetiria mil vezes, se fosse necessário, mas seu sucesso, ao contrário do que acontece com a maioria das pessoas que o fazem, no meu caso não foi completo. Ele é feito para acabar com os sintomas da diabetes e, no meu caso, não preciso mais tomar insulina. Portanto, deixei de ser um diabético insulino-dependente, mas ainda tenho que fazer dieta e tomar remédios para resistência à insulina, pois o açúcar no sangue sobe quando cometo abusos. A qualidade de vida que esses transplantes me proporcionaram foram excepcionais. Posso dizer que, organicamente, sou outra pessoa. É bom salientar que o transplante de pâncreas só é feito em pessoas com diabetes do tipo 1, que já estejam com alguma conseqüência crônica da doença. Tratar a diabetes, controlar o nível glicêmico é muito mais simples que fazer transplantes e se submeter à imunossupressão, tratamento para que nossas defesas orgânicas não ataquem os órgãos transplantados.

É fácil viver numa sociedade que coloca muitas barreiras para a pessoa com deficiência?

MAQ – É mais fácil ser cego do que ser visto como cego. É mais fácil ser uma pessoa com qualquer deficiência que seja, do que ser visto como uma pessoa deficiente. É mais fácil ser gordo do que ser visto como gordo... sou magro. Todos gostaríamos de olhares mansos sobre nós. O olhar preconceituoso pode ferir, pois é ele que gera as atitudes.

Já mudou muita coisa ou a sua percepção é de que o preconceito ainda é muito forte?

MAQ – As idéias mudam antes que as atitudes. Podemos ser politicamente corretos nas palavras, fica bonito, mas na hora da coisa acontecer espontaneamente, o preconceito aparece na maioria das vezes. Porém, nesses 27 anos de cegueira, percebo mudanças acontecendo e a sociedade, em geral, se aproximando, querendo saber, solidarizando-se.

O que você pretende passar no livro?

MAQ – Pretendo mostrar minha história de vida. Sopro no corpo: vive-se de sonhos é uma autobiografia na qual revelo minhas vitórias e derrotas, dores e prazeres para, no final, o leitor sentir que ela é um romance intenso, movimentado, que eu amo a vida justamente porque, com todos os meus limites, realizei meus maiores sonhos. Por isso, com toda a luta, não deixo de sonhar. Todos que lerem meu livro vão perceber que a vida me deu muitos presentes e que, por isso mesmo, não a deixo aos pedaços pelo caminho. Estou vivo, amo a vida.

“É mais fácil ser uma pessoa com qualquer deficiência do que ser visto como uma pessoa deficiente”

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