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domingo, 23 de agosto de 2009

Atitudes negativas sabotam o potencial de quem tem deficiência

Entrevista íris Carvalho
"Atitudes negativas sabotam o potencial de quem tem deficiência"
Íris Carvalho Silva, 33 anos, é formada em Administração de Empresas e trabalha em uma agência do Banco do Brasil, em Salvador, Bahia. Nascida em Remanso, no mesmo estado, solteira, é tetraplégica, em função de acidente automobilístico, em 1989, aos 19 anos de idade. Superado o choque inicial, Íris hoje defende os direitos e o espaço de pessoas com deficiência, sendo presidente do Centro de Vida Independente (CVI), da Bahia, uma instituição que vem ganhando grande destaque em âmbito nacional por estar à frente de uma ação cível pública para garantir acessibilidade nos ônibus interestaduais na Bahia. Confira entrevista exclusiva ao Jornal da AME:
AME - Quais são as limitações ou dificuldades que uma pessoa com deficiência enfrenta no dia-a-dia? Íris Carvalho - As pessoas com deficiência enfrentam pelo menos três grandes dificuldades: os problemas inerentes à deficiência, as barreiras do preconceito e um modelo social excludente. A deficiência física por lesão medular, que é o meu caso, tem conseqüências que influenciam fortemente no modo como conduzimos as atividades diárias. Algumas são aparentes, outras nem tanto, por isso, às vezes, ignoradas e desrespeitadas. Há perda de mobilidade, força, equilíbrio, sensibilidade, há mudança no funcionamento da bexiga, intestino, fatores que ao longo do tempo, sem uma reabilitação adequada, causam seqüelas graves. Outros tipos de deficiência causam limitações diferentes, mas que também demandam cuidados, tempo, recursos humanos, tecnológicos e financeiros extras. Apenas 2% das pessoas com algum tipo de deficiência têm acesso ao serviço público ou particular de reabilitação, segundo a Organização Mundial de Saúde. Logo, conclui-se que a tendência é que problemas de fácil prevenção ou manutenção tornem-se maiores, comprometendo atividades da vida diária. Outro grande problema é a desinformação ou subinformação a respeito da real capacidade das pessoas com deficiência, tanto delas próprias, da sua família, como da sociedade em geral. Isso cria a barreira invisível, quase intransponível, do preconceito, que aumenta a exclusão. As atitudes negativas sabotam o potencial ou criam super-heróis, mas nunca igualam capacidade, dificuldades, desejos com os das pessoas sem deficiência. A negação da deficiência como mais uma característica humana, faz a sociedade negar também sua responsabilidade de disponibilizar serviços e propor leis que garantam direitos específicos para a igualdade de oportunidades.
AME - Qual é sua avaliação sobre o modelo social hoje vigente no que diz respeito às pessoas com deficiência? Íris - Nosso modelo social possui um problema estrutural crônico. Convivemos, predominantemente com a exclusão, parcialmente com a integração e pontualmente com a inclusão social. Este modelo, que é o ideal, prevalecerá quando a sociedade, através de tomada de consciência, se preparar para acolher todos os seus cidadãos, respeitando sua diversidade, eliminando barreiras, promovendo acessibilidade em todas as suas formas, para que todos possam desenvolver seu potencial. Por exemplo, o governo, através da elaboração e execução de políticas adequadas, promove a acessibilidade física nas escolas regulares, espaços, prédios, transportes e meios de comunicação; proporciona a capacitação de professores para atender as diversas demandas das crianças com e sem deficiência, acompanhando o processo até que a formação profissional do indivíduo possa ser completada. As empresas preparam seus espaços, programas, instrumentos, sistemas de comunicação, pessoal, de forma a atender funcionários, clientes, que possuam as mais diversas características. Do outro lado, as pessoas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão é uma via de mão dupla. Só é legítima dessa forma. Porém hoje a realidade da grande maioria das pessoas com deficiência é de exclusão total dos sistemas sociais. Exclusão e inclusão acontecem paralelamente ao modelo da integração, que é a preparação unilateral das pessoas com deficiência para assumir papéis numa sociedade isenta de responsabilidades. O cidadão que já possui dificuldades ligadas à deficiência, tem que arcar com todo o ônus, sobrecarregando seu físico ao locomover-se nos transportes e espaços de difícil acesso e circulação, sujeitando-se aos serviços disponíveis, que põem em risco a sua integridade física e desrespeitam o direito à dignidade. Se optarem por serviços especiais e acompanhantes, arcarão com o ônus financeiro, pagando caro por eles. A violação dos diversos direitos, principalmente do direito de ir e vir, que permeia todos os outros (educação, trabalho, saúde, lazer, cultura), aliado à impunidade, impossibilita o exercício da cidadania não só por parte das pessoas com deficiências, mas de uma significativa parcela da população, incluídos aí quem possui doenças crônicas, idosos, obesos, grávidas, etc. Todos que estão fora do padrão ideal, ilusório, da perfeição.
AME - Quais são as conquistas que podemos destacar no universo das pessoas com deficiência? Íris - Existem pessoas trabalhando sério, principalmente em ONGs, a exemplo da AME e dos CVIs, influenciando as políticas públicas, mudando o rumo da sociedade brasileira e o futuro das pessoas com deficiência para melhor. Temos recursos humanos, capacidade técnica instalada e soluções tecnológicas, que podem amenizar ou eliminar limitadores físicos e cognitivos das pessoas. Existe uma proposta interessante de criação da Associação Brasileira de Ajudas Técnicas, em Pernambuco. Eu uso adaptações para escrever, digitar, uso cadeira de rodas motorizada, em ambientes de difícil locomoção. Tenho consciência de que, no âmbito social, a busca da articulação, e no físico, a busca da tecnologia assistiva, podem ser a diferença entre estar incluído ou fora da sociedade
AME - A partir de quando e como se deu seu envolvimento com a luta em prol da pessoa com deficiência? Íris - A busca de parceiros para encontrar soluções, em qualquer área, é uma característica do ser humano, um processo que é amadurecido ao longo da vida. Sempre procurei grupos, seja de religião, teatro, esporte, dança, para interagir, contribuir, de forma voluntária. Com relação ao CVI, começou mais ou menos em 1998, quando senti necessidade de saber e divulgar eventos relacionados às pessoas com deficiência, em Salvador. Eu fazia parte do grupo de dança "Sobre Rodas" e precisava de um espaço para divulgar os espetáculos. Nessa época resolvi fazer homepages para complementar minha aposentadoria. Escolhi fazer um site em que pudesse reunir as mais diversas informações pertinentes ao universo das pessoas com direitos específicos, principalmente com deficiência. Então começou uma maratona em busca de serviços, produtos e políticas existentes em Salvador, que atendessem a esse público. Pude ter uma visão panorâmica da atuação da sociedade civil e poder público e perceber a visão mais assistencialista de umas associações ou a promoção da independência de outras. Foi ao ar o site "encontro" http://encontro.virtualave.net , divulgando, de forma inédita, num mesmo lugar, serviços prestados pelas ONGs de apoio às pessoas com deficiência, em Salvador. Por causa desse meu interesse, fui convidada a participar do primeiro protesto em prol da acessibilidade em Salvador, liderado por várias entidades da área da deficiência e direitos humanos, o que motivou minha atuação no CVI Bahia.
AME - O que representa hoje o CVI na sua vida e na vida das pessoas com deficiência?Íris - O movimento de Vida Independente mudou o rumo da história das pessoas com deficiência no mundo. Aconteceu em Berkeley, Califórnia - USA, nos anos 60. Pessoas com deficiência física muito severa foram para as ruas expor sua indignação por viverem isolados socialmente e mostrar que, apesar das limitações físicas, tinham poder interior de fazer escolhas, tomar decisões e assumir o controle da própria vida. Naquele momento se dissolveu o grande equívoco de que a incapacidade está nas pessoas que possuem algum tipo de deficiência. A sociedade é que evidencia a incapacidade dos indivíduos, ao construir barreiras que impedem o exercício pleno da cidadania. Portanto ela deve ser responsável por eliminar tais barreiras e promover a inclusão social. Em 1972, foi criado lá o primeiro CVI, que depois espalhou-se pelo mundo. Atualmente, somente nos Estados Unidos existem mais de 500 centros. No Brasil, existem 21 CVIs e um Conselho Nacional, o CVI Brasil, que representa nacional e internacionalmente a entidade. A Filosofia de Vida Independente, desenhada ao longo do tempo a partir de valores que visam reforçar o poder interior das pessoas com deficiência, a fim de que possam construir o mundo que elas desejam para si, tem norteado documentos internacionais e literatura específica atual. Na minha vida, o CVI tem ocupado grande espaço nos últimos 5 anos. O CVI-BA é um grupo pequeno e não tem liderados. São pessoas com e sem deficiência, imbuídos na busca de um mundo melhor para nós mesmos e para todas as pessoas. Isso é muito rico; é a opção voluntária, responsável, de construção do futuro. Nossa equipe funciona 24 h no ar, pois não temos em quem mandar, de quem cobrar, nem a quem culpar, se o resultado não for o esperado. Temos independência para escolhermos parceiros, projetos, locais de reunião, que normalmente é algum shopping, barzinho, hotel, enfim. Muito trabalho, muita farra, muita cumplicidade. Temos credibilidade e reconhecimento entre as instituições da sociedade civil, em Salvador e fora também. Isso tudo significa que o CVI vai muito além de um projeto social, uma ajuda a uma organização. O CVI é minha vida, parte da minha história sendo escrita por mim, de forma isenta e independente, com muita paixão.
AME- Como são tratadas na Bahia (em especial, em Salvador) as questões relativas ao universo da pessoa com deficiência sob o ponto de vista de políticas públicas e acessibilidade? Íris - A Bahia tem um território muito grande. Acredito que em Salvador e em Feira de Santana, a segunda maior cidade daqui, tenhamos avançado mais em algumas questões. Convivemos com muitas formas de exclusão, a exemplo da escolar, no trabalho, saúde, transporte. De forma organizada e sistemática, diversas entidades da sociedade civil da área das várias deficiências e direitos humanos formaram a COCAS - Comissão Civil de Acessibilidade de Salvador. Hoje são 15 entidades, com o objetivo maior de promover inclusão, a partir da garantia do direito de ir e vir, de forma segura e independente. Uma pesquisa inédita, realizada pela COCAS, levantou as condições de acessibilidade em Salvador, o que motivou o Ministério Público Federal a cobrar dos prédio públicos federais, requisitos de acessibilidade. A Prefeitura já fez parceria para treinamento de seus técnicos pela COCAS. Está sendo desenvolvido também o projeto de assessoria jurídica às pessoas com deficiência. Pressionamos, com nossas reivindicações, para que a construção e reforma de praças e vias públicas contemplem a acessibilidade. A mídia incorporou a terminologia adequada para as questões da deficiência e está, como aliada cobrindo eventos e denúncias. O conceito de desenho universal e de cidade para todos, hoje faz parte do discurso coletivo. Aos poucos a sementinha cresceu, pois havia convicção nas idéias e ações. Buscamos o caminho certo, da articulação, da parceria e saímos todos reforçados dessa decisão.
AME- Poderia deixar uma mensagem para nossos leitores? Íris - Deixemos a passividade de lado. Não percamos a capacidade de nos indignar com a injustiça e de lutar pela equiparação de oportunidades. Em Salvador, recentemente, os estudantes pararam a cidade por vários dias, na luta pela desoneração dos transportes. O Poder público se curvou, a mídia apoiou, a opinião pública aplaudiu, pois sentiram na atuação daqueles jovens o resgate da cidadania de toda a população. Já temos leis demais, precisamos cobrar a efetivação do Direito. Temos nas mãos instrumentos poderosos como o voto, a associação, o acesso à Justiça. Construir o futuro que queremos, isto sim trará felicidade, não só para 2004, para nossa geração, mas enquanto tiver a vida.

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